quarta-feira, 26 de maio de 2010

CLÁUDIO PEREIRA
 
A noite de Fortaleza procura em vão por Cláudio Pereira. Os amigos, desolados, sabem que aquele copo de rum com coca-cola não mais adornará as muitas mesas de bares de todos os nossos pontos cardeais. Uma curva má afamada e agourenta, entre João Pessoa e Recife, pensou que, em cortando os movimentos de seus membros inferiores, o aniquilaria. Médicos daqui e de fora, em cirurgias, quedaram-se impotentes diante do quadro real de paraplegia. Coitados desses médicos que vaticinaram vida breve ao então enfermo. Cláudio riu deles por 37 anos. Riu quando assumiu a Fundação de Cultura de Fortaleza, por três administrações diferentes, e agitou esta cidade como nenhuma entidade ou pessoa o fizera. Não foram livros não lidos que transmitiam essa cultura, mas o fermento que ele impôs nos múltiplos salões de Abril que regiam a arte com a ajuda do então curador João Jorge Melo, que lamentava a perda do ex-chefe que “tinha o caráter da dignidade, na força da resistência, realizados no sonho de viver”. Não foram discursos barrocos que enchem o vazio de seus autores que Cláudio levou para a periferia. Levou folguedos, músicas e livros acessíveis, palavras curtas de duração e plenas de integração. As batidas dos maracatus ressurgiram em seus passos sincopados por conta de um homem que não podia dar um passo sequer. E o menino Cláudio Roberto de Abreu Pereira, aos 14 anos, passou no concurso do Curso de Aprendizagem Bancária, do Banco do Nordeste. Fez-se bancário e jornalista. Depois, após a curva, veio a francesa Martine Kunz, essa professora-doutora de literatura apaixonada pelo Ceará que, de tão perspicaz, se casou com Cláudio, a sua síntese da terra amada e adotada. Esse casamento tinha a fragrância da benquerença permanente entre culturas díspares, mas complementares. Viraram o mundo por américas e Europa. O sobrinho-neto de Capistrano de Abreu foi também chamado para uma academia de letras. E aí navegou por pélagos novos da cultura, aqueles que sabem de suas limitações, mas têm a grandeza de aprender. Agora, estou voltando de seu velório e sepultamento. Não havia autoridades. O jazigo virou um vasto tapete de flores. Amigos de cãs gris das múltiplas faces e jornadas de Cláudio se sentiam patéticos. E, após o violino calar, Maria Luiza Fontenele falou com a alma dos que não se enlodaram na política e disse que “Cláudio marcou a história do Ceará e da administração popular da cidade por sua solidariedade, capacidade de romper barreiras e ter compromisso com o coletivo”. Após tudo, pedi à Mônica Barroso, sua velha amiga noturna, que o definisse. Ela, olhos lacrimejando, disse que “ele era a concretude da fraternidade, da igualdade e da alegria cercado por um exército de amigos”. Esses amigos estavam lá, mudos de vozes, desvalidos, cientes de que o insondável levara o Pereira. A relva em que pisavam no entardecer deixava ver a terra revolvida e tinham, mesmo a contragosto, a certeza da finitude, do pó.

(publicado no Jornal O Estado, em 14 de maio de 2010 e nos eletrônicos www.joaosoaresneto.com.br; www.maranguape.blog.br www.amigosdolivro.com.br e academiafortalezensedeletras.blogspot)

João Soares Neto,
escritor

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