segunda-feira, 21 de junho de 2010

PARA RESPIRAR SARAMAGO

Mantovanni Colares, professor universitário e magistrado

A concretização da proximidade literária de Saramago custou-me um lapso temporal expressivo. De início, tentei a leitura de “Ensaio sobre a cegueira”, abandonando-o em seguida por me sentir sufocado pelo texto retilíneo, sem parágrafos, tabulações ou indicações de pausa. Não insisti, pois de cedo aprendera que a literatura só funciona naquele momento mágico em que o leitor se sente atraído pela obra, hipnotizado a tal ponto de não conseguir se desvencilhar do livro. Por isso, há o tempo certo para cada autor, para cada obra. Alguns meses depois, estimulado por minha verdadeira paixão devotada a Fernando Pessoa, aventurei-me a folhear “O ano da morte de Ricardo Reis”, porque ali o protagonista era justamente um dos heterônomos do poeta da alma. O início foi sofrível, atormentava-me a seqüência uniforme do texto, até que parei para respirar. Respirei fundo, e só aí entendi a chave do gênio Saramago: seu estilo provocante é, na verdade, um inteligente método de autodomínio lingüístico. O leitor não se pode deixar preso na armadilha estrutural do texto. Cada leitor há de fazer sua pontuação, sua pausa. A liberdade do ritmo é nossa. Saramago nos presenteou com a possibilidade de sermos co-autores de sua obra. A ousadia do mestre está nessa mensagem, quase imperceptível: ele escreveu o livro, mas a obra só haverá de ser finalizada após nossa leitura, porque nós terminaremos de escrevê-lo, ao realizarmos as pontuações e pausas, de acordo como nossa cadência de percepção do texto. Ele conseguiu a tão sonhada interação real entre escritor e leitor. Ouso dizer que um livro de Saramago que ainda não foi lido não é verdadeiramente uma obra literária. Somente com a descoberta dessa chave pelo leitor, a percepção do enigma de nossa interatividade na leitura, é que se tem o fecho do livro. Enfim, para ler Saramago é preciso respirar. Quem tem o privilégio de sentir isso na alma ficará cativo para sempre de sua obra; de tal modo que passa a ser um vício. E esse vício confirma a cada dia que literatura é, acima de tudo, estilo. É isso que diferencia o contador de estórias do romancista. No Brasil, Machado de Assis já nos acenava com essa advertência, e Guimarães Rosa comprovou como ninguém que o segredo está na forma, muito mais do que no conteúdo. Em Saramago, firmou-se um estilo de respeito ao leitor, pois temos o privilégio de ler o texto de acordo com nossa respiração. A liberdade da pontuação é o legado mais revolucionário que ele deixa para a humanidade.

Mantovanni Colares é juiz, professor universitário e escritor.

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